Os olhos da milícia sob o Rio de Janeiro

Através do mapa, milícias se espalham em 26 bairros cariocas, onde moram cerca de 2,2 milhões de pessoas, além de outras 14 cidades do estado

A milícia, assim como a Hidra de Lerna, um monstro da mitologia grega quase invencível porque suas cabeças, quando decepadas, se reconstituíam, parecem se regenerar após cada golpe imposto por investigadores e promotores. Há 20 anos, o que apenas existia era um grupo paramilitar no estado, em Rio das Pedras, Jacarepaguá. Atualmente, com muitas prisões depois, com um CPI das Milícias instalada, as quadrilhas atuam em um território cada vez maior: além de 26 bairros na capital carioca, se encontram em 14 cidades do estado. Somente no município do Rio de Janeiro, 2,2 milhões de pessoas estão sob a tirania de milicianos, seja direta ou indiretamente.

Além das antigas modalidades criminosas, como a cobrança de taxas de segurança, exploração de transporte clandestino e a venda pirata de sinais de TV a cabo, as milícias agora investem em novas atividades ilícitas, no intuito de dificultar, cada vez mais, as ações do poder público. Aos negócios em terra, como o controle quase total da ocupação do solo em várias áreas da cidade, somam-se frentes abertas na Baía de Guanabara, onde pescadores já sofrem extorsão de dinheiro.

Com a ampliação desses grupos, os mesmos contam com pontuais associações a traficantes da facção Terceiro Comando Puro (TCP), que em alguns locais, passaram a receber mais ameaças pelos rivais do Comando Vermelho (CV). Nessa guerra toda, em Jacarepaguá, a Cidade de Deus se tornou uma área estratégica para a execução de um plano ambicioso: avançar sobre a Zona Norte, a partir da tomada de comunidades de Madureira.

O promotor Luiz Antonio Ayres, um dos maiores especialistas em milícia do Estado e que há duas décadas atua na Zona Oeste, alerta que “a milícia está investindo na Cidade de Deus. Se dominá-la, fechará uma espécie de cinturão na Zona Oeste. Ao mesmo tempo, ela resiste às tentativas do tráfico de retomar a Praça Seca e a Covanca. A partir dali, Madureira é o primeiro alvo. Pelas informações de que disponho, a ideia é avançar em direção à Zona Norte”.

Ayres ainda complementa que “se conseguirem o que desejam, os paramilitares terão o controle das comunidades do lado esquerdo da Avenida Brasil, no sentido da Rio-Santos. Na minha opinião, há um plano muito claro de invasão de territórios baseado em ações coordenadas, sem tiro a esmo, que exigem paciência”.

De acordo com o promotor, o mapa da expansão desses grupos já avança para a Região dos Lagos. “Temos foco de milícias em Niterói e na Região dos Lagos. Em cidades como Cabo Frio e São Pedro da Aldeia, elas já estão presentes. No lado oposto do Estado, temos os municípios de Itaguaí, Seropédica e Mangaratiba sob o controle de paramilitares. Em Angra dos Reis, com exceção do Frade, ainda reduto de traficantes, há presença de uma milícia realizando atividades escusas em vários bairros, incluindo o Centro. Pelos olhos do cenário atual, as quadrilhas estão fechando uma espécie de cinturão na Zona Oeste do Rio, na Baixada Fluminense e na Costa Verde”.

Leandro Mitidieri, procurador da República, afirma que já existem oito denúncias na Justiça Federal em relação a ações de paramilitares em Cabo Frio e adjacências. “Realizamos duas operações com a Polícia Federal no ano passado, uma para identificar responsáveis pela pesca durante o defeso e outra para reprimir ocupações irregulares. Nos dois casos, havia indicativos da presença de milicianos”, relata Ayres.

Estudando o caso há 15 anos, o delegado Claudio Ferraz registra que as milícias ficaram mais organizadas e mais complexas. Durante sua gestão na Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas (Draco), entre 2006 e 2011, foram cumpridos mais de 600 mandatos de prisão preventiva contra paramilitares em bairros como Rio das Pedras, Campo Grande e Santa Cruz. Mesmo pela grandiosidade das atividades policiais, no entanto, não foi suficiente para exaurir as milícias da Zona Oeste.

Para Ferraz, “os grupos paramilitares do estado se enquadram no conceito clássico de máfia”. Pedindo anonimato, policiais criticaram a forma de combate às milícias.

Segundo um investigador que não quis se identificar, “a Polícia e o Ministério Público identificaram as quadrilhas e prendem seus integrantes, mas não vão atrás de suas riquezas. Ou seja, não atacam o principal, que é a estrutura financeira das quadrilhas. Raramente uma operação termina com sequestro de bens, buscas nas empresas dos presos ou de seus parentes e identificação de contas bancárias”.

Para os moradores das regiões chefiadas pelas milícias, o poder delas parece ser inabalável. Em janeiro, foi realizada a operação Os Intocáveis, em Rio das Pedras, com 13 mandatos de prisão contra suspeitos de comandar o grupo paramilitar da comunidade. Para que reside no local, nada mudou.

De acordo com um morador, “a milícia continua cobrando taxas de segurança de comerciantes, vendendo botijões de gás com ágio e controlando o transporte de vans”.

Dados do Disque-Denúncia (2253-1177), em 2018, após o assassinato de Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, houve um recorde de informações sobre milicianos. Somente na capital carioca, foram realizadas 4.441 denúncias em 2018, contra 2.434 em 2017, expressando um aumento de 82%.

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